A ilustração de Cynthia Torp, criada para o Actor Theatre of Louisville e publicada no Illustration Annual 1987 Communication Arts (pg. 70), foi o ponto de partida para estes contos. Aos leitores, está reservado um lugar privilegiado nessas viagens, que recomendo ocupar.
Rubem Penz
A tragédia do cotidiano
Geraldo Barreto Vianna – setembro 2009
O metrô recém saído da Estação Centro ruma célere em direção à periferia da cidade cortando a noite fria. Em seu interior, protegidos por grossos gorros e casacões, os passageiros...
Passageiros? Não! Não são simples passageiros. São atores, intérpretes de si mesmos na tragédia da vida, peça encenada diariamente no palco de qualquer metrópole. São muitos. Seus rostos mostram apenas o conformismo e o sentimento da própria falta de dignidade que os atinge.
O homem de aspecto respeitável, de pé no corredor, o gorro a proteger-lhe a calva, não consegue esconder, por trás das lentes, o brilho no olhar. Seus problemas financeiros estavam resolvidos: conseguira o dinheiro para pagar inúmeros credores; sua mulher, grávida, agora poderia ter um atendimento médico adequado; os filhos freqüentariam bons colégios. Mas- e sempre existe um mas na vida- surgia outra dificuldade. Como esconder o desfalque que acabara de dar no banco em que trabalhava?
A diarista, triste figura, exausta depois de mais uma faxina, viajava sentada, esperando chegar logo ao seu quarto imundo onde sabia que ninguém a estaria esperando: nem filhos, nem marido, nem amigos. Ninguém. Lá poderia descansar até que chegasse a hora de sua próxima jornada. Assim, dia após dia, até que partisse para a jornada final. Lá, então, talvez alguém a esperasse.
A prostituta, no outono de sua profissão, passada em anos e em peso, a todos observava. Um gasto casacão de lã a protegia do frio e escondia o brilho e a ousadia do seu traje da noite. Ansiava em conseguir um último cliente que quisesse comprar seu corpo e seus carinhos. Só assim poderia completar o dinheiro que precisava para dar de comer a seus filhos no dia seguinte.
Sentado, fingindo ler, o homem mal trajado, olhos brilhantes de lágrimas que não desciam, pensava como contar à sua mulher que tinha sido despedido do emprego de porteiro no condomínio classe-alta onde trabalhava. Como, na sua idade, conseguiria outro emprego? Se nada aparecesse, teria que aceitar o convite daquele amigo de infância para assaltar o prédio onde até hoje trabalhara.
Na extremidade de um banco, o palhaço. Moído depois de mais um espetáculo do circo decadente onde há anos alegrava as crianças. Seus trajes e sua face ainda pintada recebiam as luzes do vagão como spots de um palco real. Mas, nem a mais forte iluminação poderia ocultar a tristeza e a ansiedade mostrada em sua fisionomia e em seu olhar. Contava os minutos para poder chegar em casa e substituir sua mulher, com quem há semanas se revezava nos cuidados ao filho agonizante.
No dia seguinte os jornais noticiavam em manchete:
Acidente no Metrô. Vagão pega fogo. Não há sobreviventes.
Ribalta
Vera Castro – setembro 2009
Fim de espetáculo. Baixa o pano. Ele vai para o camarim, olha-se no espelho e não se reconhece. Apenas vê seu personagem. Não lhe restam forças nem para tirar a fantasia de pierrô. Cadê a sua Colombina?
Ele olha da coxia o vazio imenso da platéia e sai a passo. Leva consigo a tristeza estampada na maquiagem. Rua deserta como a sua vida, pega o metrô absorto em pensamentos, sem ver os demais ocupantes, assim como eles tampouco lhe notam.
Ele pensa nos anos que atua sob a ribalta, nos momentos de glórias já vividos, lotação plena, aplausos, manchetes. Quantos sonhos!
Na platéia, mulheres bem vestidas desfilando jóias e requinte. Os homens com ternos de fino corte, acompanhando-as. Silêncio absoluto durante o ato e, ao final, aplausos. Bravo!
Hoje, decadência impactante. Poucos espectadores sem a menor postura, conversas e toques de celular.
E a minha arte?, pensava, em nada mudou. O que mudou então?
Nesse devaneio de dúvidas, lhe restou a certeza de que o único spot a lhe iluminar agora era o do vagão do metrô.
Fim de espetáculo.
Em Londres, no metrô.
Silvia Clara Agnes
Depois de mais um dia exaustivo, Miguel embarcou no trem que o levaria para o bairro miserável onde morava. É faxineiro avulso de alguns restaurantes no Chinatown londrino. Sua profissão o coloca no extremo sul da pirâmide social. Imigrante ilegal, sem documentos, tem medo da deportação. O sonho de juntar rapidamente uma boa grana virou mais uma decepção na sua história de vida.
Emergindo da sessão diária de autopiedade, Miguel começou a reparar nos outros passageiros do vagão. Aquele ali deve ser turco. O outro, sentado à sua frente, tem traços orientais, talvez seja coreano ou vietnamita. A mulher gorda, com o filho no colo, parece exausta. Em pé, dois negros retintos falam em uma língua estranha, ao mesmo tempo suave e gutural. Perto deles uma mulher loira tagarela sem parar no celular. Pensou ser uma vendedora de loja ou garçonete. Na seqüência, Miguel viu, sentado no último banco do vagão, uma figura inusitada.
Era um homem com cara de palhaço, roupa de palhaço e um olhar triste de palhaço. Sua presença ali quebrava a mesmice do cotidiano cinzento. Absorto, ele contemplava o nada.
Tendo superado o espanto, Miguel aproximou-se, pediu licença e sentou ao lado. Apesar da indiferença do palhaço, começou a falar. Contou que era brasileiro, tinha 47 anos, que sentia saudades da sua terra, da sua mãe e da ex-noiva. Disse que trabalhava com restaurantes, que gostava de cinema e de música instrumental. Só parou de falar quando o palhaço, finalmente, o encarou. Seu olhar, misto de espanto e alegria. Um enorme sorriso aflorou sobre o outro, triste, da maquiagem. E, surpresa das surpresas, o palhaço falou em português.
- Miguel, sou eu, o Luciano!
- Quem? O que?
- O Luciano, cara!
- Não pode!
O abraço foi enorme, daquele tipo reservado só para os grandes amigos. A pequena platéia compulsória entendeu que velhos camaradas haviam se encontrado. Alguém até ensaiou um aplauso, outro assobiou, brindando a alegria daquele reencontro.
Havia muitas recordações para debulhar. Fazia mais de trinta anos que eles não se viam. Miguel perguntou, ansioso, para o amigo:
- Cara, o que tu tá fazendo nesse trem, aqui no subúrbio de Londres?
- Ah, é uma longa história. Lembra das minhas palhaçadas nas festinhas da escola? E quando a gente se pendurava nos cipós pra se jogar na sanga? Lembra das mágicas prá vizinhança assistir? E o lance de saltar entre as árvores com uma corda, igualzinho ao Tarzan? Pois eu continuei fazendo isso e muito mais. Vi na TV um circo canadense e pensei: é isto que quero na vida. Bem, consegui. Fui pra Montreal e comecei como aprendiz. Agora sou o diretor artístico do Cirque du Soleil. Estou neste trem, vestido assim, porque estou montando um espetáculo novo e procuro inspiração para captar a relação entre o burlesco e a realidade. Mas e tu, Miguel? O que é feito da tua vida?
- Olha aí, tu lembra que nos acampamentos sempre era eu quem cozinhava? Lembra daquelas carpas que a gente pescava no açude do vizinho e depois assava com espeto de taquara? Lembra que minha mãe era excelente cozinheira? Pois eu aprendi tudo com ela tudo, e esse foi meu caminho na vida. Primeiro fui garçom, depois chef. Aqui na Inglaterra comprei um pequeno restaurante que ficou famoso. Abri muitas filiais. No ano passado consegui comprar a franquia do China in Box no Reino Unido. Por que estou neste trem? Estou conferindo uma projeção de marketing, verificando o potencial desta região para novas lojas da franquia. Os passageiros dos trens suburbanos de Londres vão encontrar nossa fast food no próprio bairro.
Relatadas as atividades profissionais, os amigos passaram a lembrar grandes momentos do passado. Riram muito. Mas chegou a hora da despedida. Mais um grande abraço e as últimas manifestações de amizade:
- Foi demais ter te encontrado neste trem, Luciano!
- Miguel, amigão, foi demais mesmo. Vamos manter contato.
- Tá. Pra me encontrar liga pra holding do China aqui de Londres.
- Combinado. E tu, liga pra central do Cirque, no Canadá. Eles direcionam a chamada. Vou estar girando pelo mundo com o novo espetáculo. Tchau!
Miguel desembarcou na estação seguinte. Suspirou fundo e foi a passo rumo à pensão decadente.
Luciano foi até o fim da linha. Era ali que estava armado o circo mambembe onde o palhaço triste se apresentava.
segunda-feira, 21 de setembro de 2009
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